terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

The House of the Rising Sun

Eu só sei que estou de férias quando meu relógio biológico descaceta de vez. Começo acordando às três da tarde, hora de almoço para todos, menos eu, claro. Mas o mundo não vai deixar de almoçar às três da tarde só porque um pobre coitado dormiu na hora do café-da-manhã. Por isso, acordo comendo arroz, feijão e bacalhau com pimenta e azeite, não vivo sem. O resto do dia não tem mais nenhuma refeição formal, é só um bando de comida que vou botando pra dentro em intervalos irregulares e intercalando umas cervejas.

Sendo assim, as madrugadas são insones e a barriga fica indecentemente mais redondinha.

...

O dia está clareando e eu ainda nem dormi. É o meu relógio biológico dando sinais de extrema insanidade. E é esse descontrole que faz a ficha cair: estou de férias! Fé-é-rias! Meus horários podem ter a maior bagunça do mundo, mas e daí? É recesso! Café-da-manhã às três da tarde, almoço à meia noite, janta às nove da manhã, uma beleza. Mas quando me dei conta de que eu havia acompanhado três sóis nascentes seguidos fiquei meio preocupado. À despeito da lua, ainda tão bela e branca à espera de algum admirador retardatário, resolvi dividir minha angústia.

- Tô preocupado, meu relógio biológico tá todo sem noção. Dois minutos pras seis e ainda não dormi.
- PQP nem eu!
- Ah, quer saber? A gente que é cool, baby. Olha o espetáculo, e já é o terceiro sol nascente seguido que vejo. E a lua cheia se pondo no céu avermelhado? Que maravilha!
- To com as cortinas fechadas para me convencer que ainda é noite.
- ...

E lá continuei eu, no terraço de casa, cercado de casas por todos os lados, curtindo essa calma que só as manhãs tem. Sabe, eu tinha me esquecido de como as manhãs são tão gostosas. Me fez lembrar da época na qual acordava bem cedo pra pegar o ônibus das 6:05 e ir para o colégio. Nem um minuto a mais, impressionante a diferença: o ônibus das 6:10 pega um puta trânsito na via "expressa" e demora meia hora a mais em relação ao das 6:05. Antes do sol as manhãs são mais gostosas mesmo, esse finzinho de sereno, uns pássaros cantando, outros voando, o céu indeciso em ser claro ou escuro, azul ou vermelho, essa lua se esvaindo aos pouquinhos. Fading seria a expressão mais certa; esvair lembra definhar, desaparecer é termo muito cru. Talvez "virar fumaça" servisse, mas ela não vira nada, a lua continua lá. Indo embora, mas ali ainda, pálida sombra, como um véu ficando cada vez mais fino.

Procurando a expressão mais certa, meus olhos se perdem. Vão encontrar um avião tão longe, mas tão alto que nem dá pra vê-lo. Só sei que é um avião porque deixa uma cauda de nuvem por onde passa, alguma condensação proveniente da combustão propulsora, só os físicos sabem direito, vivem disso afinal. E eu passei a viver da existência daquele voador solitário, tão longe qual nenhum radar nem nenhuma torre de controle alcançaria. Que faria aquele piloto sabendo que está no espaço aéreo não de um país, mas de um rapaz insone? Digo a ele pelo rádio para não se espantar, esse é meu emprego, ser um fiscal dissidente e solitário, e fico esperando o telefonema do ministro da aviação. Ele ligará para saber se está tudo em ordem, se o vôo está sendo tranquilo para seus passageiros, se o avião risca o firmamento com carinho. Prontamente responderei com pompa de guardião dos ares o que consta no boletim: "a aeronave e sua cauda cruzam os céus com a serenidade de uma vaca na Índia. Se localizam às onze horas e rumam para leste. No mais, tudo em ordem, o céu está uma uva". O ministro agradecerá com grandiloquencia "louvado seja por esse serviço de indispensável importância à nação. Não saberia dizer o que seria dos céus sem um distinto cavalheiro de exacerbada responsabilidade e envolvimento com as causas celestes!" ao que responderei "é apenas o meu trabalho".

Ao fim desse devaneio matutino, voltei a mim graças ao astro rei esquentando minha cara. A lua já desaparecera completamente, assim como o dito avião e toda sua longa cauda, e o sereno já todo enxugado pelo sol. A madrugada passou, assim como o amanhecer passou, e o dia começa.

E lá continuei eu, no terraço de casa, cercado de sol por todos os lados, só curtindo essa calma.

02/01/2010

Um comentário:

  1. Posso dizer que esse post se enquadraria no estilo linguístico da Clarice Lispector, com flashes de subconsciência e singularismos típicos. Rs!
    Mas,como sempre,muito bem escrito. Quem dera se eu pudesse ter esses momentos,as férias já não fazem mais parte do meu cotidiano! E,daqui a alguns dias,minha reta final de faculdade começa a ser trilhada. Vamos q vamos!

    Mandou bem,rapaz.
    Abraço!

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